O DVD “Barravento – Edição Especial Duplo”, dirigido por Glauber Rocha e lançado originalmente em 1962, marca a estreia do cineasta no longa-metragem e é um dos marcos inaugurais do Cinema Novo brasileiro. Nessa edição especial em dois discos, o filme ganha o tratamento que merece: uma apresentação restaurada e uma série de extras que ajudam a compreender sua importância estética, política e cultural.
“Barravento” se passa em uma comunidade de pescadores no litoral da Bahia, profundamente marcada por tradições religiosas de matriz africana, hierarquias rígidas e uma vida coletiva regida pelo destino e pela fé. O protagonista, Firmino (vivido por Antonio Pitanga), retorna à vila após um tempo fora e traz consigo ideias de ruptura, liberdade e mudança. Seu objetivo é libertar o povo daquilo que ele enxerga como submissão ideológica e mística, desafiando os fundamentos da cultura local — inclusive os ligados ao candomblé.
O conflito central do filme se dá entre tradição e modernidade, espiritualidade e razão, coletividade e individualismo. Mas Glauber, mesmo ainda no início de sua carreira, já demonstra complexidade ao não tratar a modernização como simples progresso: “Barravento” não é um panfleto contra a religião ou o mito, mas uma reflexão crítica sobre como a libertação do povo não pode vir de fora, nem por imposição intelectualizada. Firmino, com sua arrogância reformadora, acaba também sendo um agente de destruição.
Visualmente, o filme já anuncia a linguagem glauberiana: câmera inquieta, uso expressivo do branco e preto, enquadramentos que acentuam a tensão entre homem e paisagem, e uma montagem que articula o realismo social com o simbolismo. A influência do neorrealismo italiano está presente, mas há também um embrião do barroquismo que Glauber desenvolveria nos filmes seguintes. A trilha sonora, marcada por tambores e cantos afro-brasileiros, intensifica o clima ritualístico e dramático.
A edição especial em DVD, lançada pela Versátil, é exemplar. O primeiro disco traz o filme em cópia restaurada, com excelente qualidade de som e imagem, preservando a força das cenas em sua crueza estética. O segundo disco oferece um conjunto valioso de materiais extras: entrevistas com Antonio Pitanga, análises de estudiosos do Cinema Novo, documentários sobre o contexto da produção, e trechos de arquivos com falas de Glauber.
Além disso, a edição pode conter um encarte crítico, com textos que abordam a importância histórica do filme, o nascimento do Cinema Novo como movimento de crítica social e de experimentação formal, e a posição ambígua de “Barravento” dentro da filmografia de Glauber — que depois se afastaria do realismo direto, mas que aqui já demonstrava inquietação radical.
“Barravento” é, portanto, um filme inaugural, com força própria e densidade temática. Através dele, Glauber Rocha dá voz ao povo sem romantizá-lo, e denuncia tanto a opressão externa quanto os entraves internos de uma cultura marcada pela herança colonial. Esta edição especial em DVD é um documento imprescindível para quem quer compreender o início de uma das trajetórias mais revolucionárias do cinema mundial. Uma obra de juventude, mas com a fúria crítica e criativa já em ebulição.